O Ministro Cezar Peluso,
presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), promulgou, em 29 de
novembro de 2011, a Resolução No 474 que "estabelece critérios para
atribuição de relevância e de valor histórico aos processos e demais
documentos do Supremo Tribunal Federal". O documento causa perplexidade
aos historiadores e a todos aqueles que, minimamente, tem acompanhado o
desenvolvimento da historiografia contemporânea, em especial por duas
razões: por procurar estabelecer "por decreto" o que é ou não histórico e
por apontar como subsídio para essa classificação critérios
considerados ultrapassados há, pelo menos, um século. Por esse motivo, a
Associação Nacional de História (ANPUH), entidade que congrega os
profissionais de história atuantes no ensino, na pesquisa e nas
entidades ligadas ao patrimônio histórico-cultural, não poderia deixar
de trazer a público a sua inconformidade com a referida Resolução.
Apesar de seus precursores
mais remotos (como os gregos Heródoto e Tucídides), o conhecimento
histórico só se estabeleceu como disciplina autônoma e com pretensões
científicas no século XIX, acompanhando o processo de surgimento e/ou
consolidação dos Estados nacionais. Naquele momento era importante
alicerçar em uma narrativa fidedigna, ancorada em provas documentais, a
história desses Estados, comprovando sua existência ao longo do tempo e
reforçando os laços de identidade entre seus habitantes, com base em uma
presumida origem comum. Não é à toa que, justamente nesse período,
surgiram os Arquivos Nacionais, inclusive no Brasil, como forma de
reunir e conservar os documentos oficiais que dissessem respeito à
"biografia" das jovens nações. Muitos historiadores, por seu turno,
voltavam sua atenção aos ditos "acontecimentos consagrados", aos
"grandes personagens", aos "fatos marcantes" da história de seus países;
acontecimentos, personagens e fatos esses, diga-se de passagem, em
geral ligados às elites políticas, econômicas, culturais, militares e
intelectuais a quem se atribuía o "fazer da História".
Ora, desde ao menos o final da
década de 1920, tal visão do que é ou não histórico foi fortemente
contestada pelas principais correntes contemporâneas da historiografia
por seu caráter limitado e elitista. Desde então, se sabe que nenhum
documento possui "relevância" ou "valor" histórico em si, mas somente a
partir das perguntas que o historiador dirige ao passado. Por exemplo:
por muito tempo, não se deu valor às experiências das mulheres na
história, ou apenas quando elas participavam de espaços tradicionalmente
masculinos como a política e a guerra. Hoje uma das áreas mais
desenvolvidas da historiografia brasileira e mundial é, justamente, a
história das mulheres, que, para se desenvolver, precisou se utilizar de
documentos antes considerados "não históricos" (talvez por envolver
mulheres pouco famosas), como registros policiais e documentos judiciais
referentes a, por exemplo, violência doméstica, guarda de crianças,
brigas entre vizinhos, etc. Neste sentido, um exemplo entre muitos
outros é o livro da consagrada historiadora Maria Odila Leite da Silva
Dias, "Quotidiano e poder no século XIX", cuja leitura indicamos aos
ministros do STF, que apresenta as lutas femininas em São Paulo naquele
período e as estratégias de sobrevivência de mulheres pobres, talvez
"sem valor histórico" na visão desses magistrados, como lavadeiras,
quitandeiras, escravas, forras, entre outras.
0 comentários